Carmen Tiburcio[1]
No Brasil e, como regra geral, no mundo, a instauração da arbitragem depende da vontade das partes, manifestada por meio de uma convenção de arbitragem. Tal convenção, como qualquer outro negócio jurídico, deve observar requisitos legais de forma e de fundo para sua existência e validade. Como a competência dos árbitros para decidir a lide depende da existência e validade da convenção de arbitragem – matéria submetida ao tribunal arbitral juntamente com o mérito da controvérsia –, convencionou-se afirmar que o árbitro decide sobre a sua própria competência. No direito alemão, essa regra passou a ser conhecida como Kompetenz-Kompetenz.
No início do ano de 2005, o Supremo Tribunal Federal de Justiça alemão (Bundesgerichtshof) proferiu importantíssima decisão relativa à regra que atribui ao tribunal arbitral a prerrogativa de decidir sobre a sua própria competência. Até então, os árbitros detinham competência exclusiva para decidir sobre sua própria competência. No caso, analisando a cláusula compromissória contida em um contrato de agência, o Tribunal concluiu que o painel de árbitros não mais terá a última palavra sobre o assunto, ainda que as partes tenham estabelecido essa regra na cláusula. A decisão definitiva sobre a matéria agora é da competência do Judiciário.
A decisão foi ainda mais longe e estabeleceu que se uma das partes questiona perante o Judiciário a jurisdição do tribunal arbitral nos termos da Seção 1032 (1) do Código de Processo Civil (em inglês: Should proceedings be brought before a court regarding a matter that is subject to an arbitration agreement, the court is to dismiss the complaint as inadmissible provided the defendant has raised the corresponding objection prior to the hearing on the merits of the case commencing, unless the court determines the arbitration agreement to be null and void, invalid, or impossible to implement), o Judiciário não é obrigado a aguardar uma manifestação preliminar do tribunal arbitral sobre a sua própria competência. O Judiciário pode se manifestar imediatamente sobre a validade da cláusula compromissória. Assim, a decisão referida acabou com o sistema tradicional alemão da Kompetenz-Kompetenz.
No Brasil, a regra adotada determina que o árbitro irá decidir acerca de sua competência em primeiro lugar, podendo essa questão ser reexaminada posteriormente pelo Judiciário. Não há, portanto, exclusividade do Tribunal Arbitral, como ocorria no sistema alemão anterior. Isso é o que dispõem textualmente os art. 8°, parágrafo único, e 20 da Lei da Arbitragem:
“Art 8°. (...) Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória.
(...)
Art 20. A parte que pretende argüir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem.
§1º. Acolhida a argüição de suspeição ou impedimento, será o árbitro substituído nos termos do art. 16 deste Lei, reconhecida a incompetência do árbitro ou do tribunal arbitral, bem como sua nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, serão as partes remetidas ao órgão do Poder Judiciário competente para julgar a causa.
§2º. Não sendo acolhida a argüição, terá normal prosseguimento a arbitragem, sem prejuízo de vir a ser examinada a decisão pelo órgão do Poder Judiciário competente, quando da eventual propositura da demanda de que trata o art. 33 desta Lei”.
Nos termos do art. 20, § 2º, da Lei, o Judiciário poderá reexaminar a questão da validade da cláusula compromissória. Nesse caso, inclusive, o Judiciário poderá acabar por reexaminar o conteúdo da decisão arbitral, uma vez instaurado o procedimento previsto no art. 33 da Lei de Arbitragem. O dispositivo permite à parte interessada pleitear a decretação de nulidade da sentença arbitral nos casos previstos na Lei (“Art. 33. A parte interessada poderá pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a decretação da nulidade da sentença arbitral, nos casos previstos nesta Lei.”). Obviamente, se é nula a cláusula que outorga autoridade ao tribunal arbitral, será igualmente nula a decisão por ele proferida (“Art. 32. É nula a sentença arbitral se: I – for nula convenção de arbitragem”).
É sabido que, como regra geral, o Judiciário não pode rever o mérito das decisões tomadas em uma arbitragem válida. Assim, por exemplo, se uma das partes alega motivo de força maior para justificar a inexecução de uma obrigação contratual, e o tribunal arbitral decide que o evento invocado não se caracteriza como tal, o ponto não poderá ser revisto pelo Judiciário. Todavia, se uma das partes alega a invalidade da cláusula compromissória, por tratar-se, e.g., de contrato de adesão, ainda que essa invalidade haja sido afastada pelo tribunal arbitral, o ponto poderá ser revisto pelo Judiciário, como explicado acima.
Portanto, o sistema adotado no Brasil com relação à competência para decidir sobre a sua própria competência é mais favorável para a arbitragem do que aquele praticado hoje na Alemanha, berço da regra da Kompetenz-Kompetenz. Isso corrobora a premissa de que o País tem objetivado privilegiar a via arbitral, podendo ser equiparado, em termos legislativos e jurisprudenciais, aos países onde se pratica a arbitragem desde há muito.
[1] Professora Titular da Faculdade de Direito da UERJ, Consultora do Escritório BFBM Advogados, Árbitra nomeada pelo Brasil para o Tribunal do Mercosul e o Tribunal Mercosul-Bolívia, Professora convidada da Academia de Direito Internacional da Haia, Autora de livros e artigos no Brasil e no exterior sobre a matéria
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