Riccardo Giuliano Figueira Torre[1]
Antonio Alberto Rondina Cury[2]
Desenvolvimentos recentes na legislação, nos estudos e na prática da arbitragem – sobretudo após a proliferação das arbitragens público-privadas em decorrência da reforma da Lei nº 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”) em 2015 – reavivaram o debate sobre a mitigação do sigilo dos procedimentos arbitrais.
É comum que se traga a confidencialidade dos procedimentos como uma das vantagens do instituto sobre o processo estatal, permitindo a discussão de temas sensíveis sem a exposição de segredos comerciais, ou mitigando possíveis danos à imagem dos litigantes.
Apesar de prevista na maioria das cláusulas compromissórias e dos regulamentos das câmaras (por exemplo, no art. 46 do Regulamento de Arbitragem da Câmara FGV), a Lei de Arbitragem silencia a esse respeito. Logo, o sigilo na arbitragem não decorre de previsão legal, mas das disposições contratuais, não configurando um elemento essencial da arbitragem[3].
O primeiro desenvolvimento acerca da publicidade veio com a reforma empreendida pela Lei nº 13.129/15. Por meio dela, formalizou-se a permissão, já constante de diversos diplomas anteriores[4], para que a Administração Pública utilize a arbitragem para resolver as controvérsias dos contratos por ela firmados – a qual deve sempre respeitar o princípio da publicidade, conforme o art. 2º, § 3º da Lei de Arbitragem; e, mesmo antes dela, na Lei de Concessões (art. 22) e na Lei das PPPs (art. 4º, V).
Tal previsão está em linha com o princípio constitucional da publicidade (art. 37), que informa a atuação da Administração Pública – incluindo a solução de seus conflitos – perante o público (para fins de transparência) e os órgãos de controle (para fins de accountability). E, assim como esse princípio, o dever concreto imposto pela Lei de Arbitragem é aplicado dentro de certos limites; por isso, o sigilo pode ser excepcionalmente decretado sobre matérias que envolvam segredos empresariais, fiscais ou de Estado[5].
Nesse contexto, é cada vez mais frequente nos depararmos com decisões em tutelas cautelares antecedentes determinando que o processo não deve tramitar em segredo de justiça. Ademais, várias Câmaras Arbitrais passaram a publicar, nos respectivos websites, informações básicas sobre os procedimentos – como o CAM-CCBC, que editou a RA 35/2019 para disciplinar o assunto, passando a informar a composição dos respectivos tribunais, mesma prática já adotada pela CCI – e até mesmo um ementário com as principais decisões adotadas no ano (omitindo-se informações relevantes, como os nomes das Partes), como é o caso da Câmara de Arbitragem do Mercado (B3).
De outro lado, porém, os próprios entes da Administração Pública vêm atuando no sentido de mitigar a publicidade com base no que se tem convencionado chamar de “interesse estratégico” – o que, com a devida vênia, é incompreensível e perigoso para o instituto.
Por meio do Parecer SUBG-CONS nº 64/2019, de 19.07.2019, a PGE-SP defendeu a disponibilização das peças das arbitragens em que o Estado de São Paulo é parte apenas após o seu encerramento. Sob o argumento do “interesse estratégico do Governo de SP em resguardar determinadas informações temporariamente”, a Procuradoria entende que a publicidade pode macular a defesa do interesse público “por permitir a obtenção de dados privilegiados acerca da condução dos procedimentos arbitrais e das premissas de defesa (...) incentivando a assimetria de informações em benefício dos advogados ou empresas interessadas”[6].
Sem prejuízo de monitorar atitudes contracíclicas como essas, o que mais importa é entender como, para essa finalidade específica, a própria configuração da arbitragem se altera, transformando em regra o que antes era exceção.
O segundo desenvolvimento se insere no âmbito das arbitragens coletivas. Ainda que sua recepção pelo direito brasileiro esteja sob discussão, fato é que já há procedimentos com essa característica no Brasil[7], impondo um enfrentamento sobre o tema.
Nos Estados Unidos, as regras das câmaras arbitrais mais tradicionais nessa categoria de procedimentos são claras ao prever que não há, em relação a eles, nenhuma presunção de confidencialidade; mais ainda, estabelecem que alguns dos atos processuais devem ser necessariamente públicos.
Nesse sentido, o regulamento de 2003 da American Arbitration Association aduz que “the presumption of privacy and confidentiality in arbitration proceedings shall not apply in class arbitrations. All class arbitration hearings and filings may be made public” (art. 9.2.a), bem como que “all awards rendered under these Supplementary Rules shall be publicly available” (art. 10.b).
Já o regulamento da JAMS de 2009 reforça essa publicidade, prevendo que “the Arbitrator shall direct that class members be provided the best notice practicable under the circumstances”, a ser dada “to all members who can be identified through reasonable effort” (regra 4).
Ainda que não haja, por ora, nenhum regulamento específico sobre o tema no Brasil oficialmente vigente – o Centro de Mediação e Arbitragem da Câmara Portuguesa de Comércio no Brasil está em vias de promulgar seu próprio Regulamento – é possível pensar em algumas características essenciais para as arbitragens coletivas brasileiras; e a publicidade é uma delas.
A partir disso, deverá haver desdobramentos relacionados à publicidade aplicável a alguns marcos principais do procedimento, como a instauração do feito, e às sentenças arbitrais. Afinal, em se tratando de direitos coletivos, a publicidade se torna uma das formas de efetivação do devido processo legal, bem como permite um controle amplo da atividade jurisdicional.
Até mesmo porque, ao se garantir a ciência plena e irrestrita de todos os membros da classe, essa modalidade de arbitragem acaba facilitando aos indivíduos a busca de seus direitos. É possível ir até mais longe: tais medidas permitem uma ciência até mais ampla do que aquela vista nas ações civis públicas, em que não há dever de publicação de editais, ou de intimação específica dos interessados, previsto nas leis aplicáveis (como a Lei de Ação Civil Pública ou o Código de Defesa do Consumidor). Afinal, quando se analisa a tutela de direitos coletivos, o processo é alçado à condição do pleno acesso à justiça[8], pelo que a ciência a respeito de sua instauração é fundamental.
Por fim, o terceiro e último desenvolvimento que prestigia a publicidade se refere à audiência pública iniciada pela CVM para alteração de sua Instrução 480, visando à criação de “novo comunicado sobre demandas judiciais e arbitrais de natureza societária”, em que haja decisão com o potencial de “atingir a esfera jurídica do emissor ou de outros investidores que não sejam parte do processo”[9]. No caso das arbitragens, vale dizer, essa condição é quase sempre verificada, pelo alto valor envolvido ou pela natureza dos litígios.
A matéria, igualmente, não é nova, pois há muito se debate como a confidencialidade “clássica” da arbitragem pode limitar o direito de voto dos acionistas das companhias litigantes e à informação do mercado. Tais circunstâncias, em cenários mais amplos, implicam a falta de uma jurisprudência arbitral e da ciência plena da coisa julgada arbitral a todos os envolvidos, a impactar diretamente a segurança jurídica que constitui uma das bases do mercado de capitais.
Esta mudança específica foi motivada por um relatório da OCDE sobre a proteção dos acionistas minoritários no Brasil[10], segundo o qual a forma vigente de divulgação seria insuficiente para que os investidores tivessem informação adequada sobre os grandes litígios envolvendo companhias abertas. O tema, aliás, está ligado umbilicalmente àquele das arbitragens públicas, uma vez que os casos recentes citados acima impulsionaram a movimentação do mercado (e da CVM) nesta direção[11].
Parece-nos acertada a iniciativa, uma vez que a plena informação dos investidores é basilar ao bom funcionamento dos mercados – e, claro, à atração de investimentos nacionais e estrangeiros. Assim, qualquer alteração nas circunstâncias da companhia que possa influenciar no preço de suas ações em bolsa deve ser informada ao mercado, para reduzir a assimetria de informações e permitir uma decisão fundamentada por todos os agentes.
Na prática, litígios de grande monta ou de importância societária indiscutível acabam tendo um (indevido) tratamento altamente confidencial. Em função disso, alterações de controle, altos riscos reputacionais e contingências astronômicas acabam sendo desconhecidos pelos próprios interessados no resultado final do litígio, i.e. os acionistas das empresas envolvidas. Ou, pior, apenas de seus minoritários, em franca quebra da isonomia.
Todos esses movimentos são bastante positivos. Por meio deles e da relativização do sigilo daí decorrentes, permite-se um bom desenvolvimento do instituto da arbitragem em relações com múltiplos interessados (stakeholders). Uma vez que eles são potencialmente afetados pela sentença arbitral, é de se esperar que tenham garantido o direito ao contraditório – no sentido de influenciar, pelas alegações e pelas provas, a decisão a ser tomada.
Isso tem o condão de diminuir eventuais questionamento da arbitragem dentro das companhias, perante os órgãos de controle e frente à sociedade como um todo, aumentando a sua legitimidade e tornando-o um meio não só adequado, como também mais seguro, de solução de conflitos.
[1] Sócio de Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados. Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo. LL.M. em International Business Regulation, Litigation e Arbitration pela New York University (NYU), tendo recebido o prêmio Arthur T. Vanderbilt. Secretário-geral do Centro de Mediação e Arbitragem da Câmara Portuguesa de Comércio no Brasil. [2] Advogado em Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados. Mestrando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. [3] CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 6.ed. São Paulo: RT, 2018, cap. 9.4.2. BAPTISTA, Luiz Olavo. Confidencialidade na arbitragem. In: V Congresso do Centro de Arbitragem Comercial – Intervenções. Lisboa: Almedina, 2012, p. 197. DINARMARCO, Cândido Rangel. A arbitragem na teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2013, pp. 62-63. Contrariamente: BRAGHETTA, Adriana. Notas sobre a confidencialidade na arbitragem. Revista do Advogado AASP, v. XXXIII, n. 119, 2013, p. 7-8. PINTO, José Emílio Nunes. A confidencialidade na arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, nº 6, jul.-set. 2005, p. 29. [4] Como é o caso da Lei nº 9.472/97, de telecomunicações, que determina que o contrato de concessão indicará o modo para solução extrajudicial das divergências contratuais (art. 93, XV). Já a Lei nº 9.478/97, que criou a ANP, tratou abertamente da adoção de arbitragem internacional, elencando-a entre as cláusulas consideradas essenciais. A Lei n.º 10.233/01, que criou a ANTT e a ANTAQ, trouxe redação quase idêntica à da Lei da ANP, com a exceção de que a alusão se deu apenas à arbitragem, não à “arbitragem internacional”. A Lei nº 10.438/2002 criou a ANEEL e impôs que questões atinentes à recomposição tarifária extraordinárias estariam condicionadas “à solução de controvérsias (...) inclusive por meio de arbitragem levada a efeito pela ANEEL”. Com a criação da CCEE por meio da Lei nº 10.848/2004, quaisquer controvérsias entre os agentes da Câmara – inclusive sociedades de economia mista e empresas públicas – passaram a ser resolvidas por arbitragem. No mesmo sentido a Lei nº 11.079/04, a qual garantiu que o edital convocatório conterá a submissão das disputas aos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive arbitragem. [5] O Decreto nº 10.025/19 ressalva as situações de segredo industrial ou comercial e aquelas consideradas sigilosas pela legislação (art. 3º, IV). [6] Analogamente, parecer do NEA-AGU no Processo de Informações n. 00003/2020/CORDNEA/NEA/CGU/AGU, de 23.11.2020, relativizou a publicidade nas“questões relacionadas à estratégia de defesa extrajudicial da União”, sob o argumento de se tratar de “vantagem competitiva a outros agentes econômicos”, defendendo que os “processos arbitrais relativos à verificação técnica e estratégica são de acesso restrito ao público, facultada a remoção da restrição de acesso após ultimado o ciclo aprobatório das manifestações jurídicas ou técnicas, ou após o encerramento do processo arbitral, a critério do responsável pela informação”. [7] “Petros, Funcef e Previ aderem à arbitragem contra Petrobras”, Valor Econômico, 14.11.2017. “Class action arbitral? Novo capítulo para a arbitragem brasileira”, Jota, 22.05.2019. “Investidores iniciam arbitragem contra o IRB”, Valor Econômico, 18.03.2020. [8] GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual coletivo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE,Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: RT, 2007, p. 11. [9] “CVM lança audiência pública sobre divulgação de demandas societárias”, 11.02.2021, disponível em www.gov.br/ cvm/pt-br/assuntos/noticias/cvm-lanca-audiencia-publica-sobre-divulgacao-de-demandas-societarias. [10] “Private Enforcement of Shareholder Rights: A Comparison of Selected Jurisdictions and Policy Alternatives for Brazil”, 18.11.2020, disponível em http://www.oecd.org/corporate/shareholder-rights-brazil.htm. [11] “Arbitragem: Especialista defende mudança na divulgação dos litígios”, Migalhas, 24.02.2021, disponível em https://www.migalhas.com.br/quentes/340779/arbitragem-especialista-defende-mudanca-na-divulgacao-dos-litigios
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