A arbitragem é o método de solução de controvérsias através do qual agentes com capacidade plena de contratar afastam a jurisdição estatal e confiam aos árbitros a solução de lides relacionadas a direitos patrimoniais e disponíveis[3]. No Brasil, o legislador concedeu aos árbitros o poder de proferir sentenças que constituem título executivo, sendo a sentença arbitral equiparada à proferida pelo juízo estatal[4]. Em razão disso, é natural que se exija do árbitro uma atuação transparente e responsável, à altura da importante função que exerce, de modo a se garantir a higidez do procedimento arbitral.
Diante disso, relevante discussão que se põe diz respeito à possibilidade de flexibilização de alguns deveres do árbitro, como o de revelação, quando suscitados em momento em que poderá gerar ineficiência e desperdício de recursos já empregados no procedimento arbitral. Tal discussão, de enorme relevância, foi acalorada quando a Suprema Corte do Reino Unido, em novembro de 2020, procedeu ao julgamento do relevante caso conhecido como "Halliburton v. Chubb"[5], em que restou nítida a importância de compatibilizar a exequibilidade da arbitragem com a garantia da confiança no procedimento.
O litígio teve origem após uma explosão na plataforma de petróleo "Deepwater Horizon" no Golfo do México, que causou mortes e ferimentos de prestadores de serviços, além de impactos ambientais. As vítimas apresentaram demandas de indenização contra as empresas responsáveis e, dentre outras, a Halliburton foi responsabilizada judicialmente por 3% dos danos.
Como tinha em vigor uma apólice de responsabilidade com a ACE Bermuda Insurance Ltd, que passou a ser denominada Chubb Bermuda Insurance Ltd (“Chubb”), a Halliburton acionou o seguro para reaver as despesas incorridas com as indenizações. Contudo, a Chubb se negou a proceder à cobertura da indenização securitária requerida pela Halliburton, que, diante disso, iniciou uma arbitragem em 2015.
No curso da arbitragem, em junho de 2015, após as partes não chegarem a consenso quanto à nomeação do árbitro que presidiria o Tribunal, o Sr. Kenneth Rokison QC[6] foi nomeado como árbitro presidente pela High Court. O Sr. Rokison, que havia sido um dos árbitros propostos pela Chubb anteriormente, revelou que já havia atuado como árbitro em procedimentos que envolveram a seguradora e que, naquele momento, estava atuando em outras duas arbitragens envolvendo a Chubb, motivo pelo qual a sua nomeação havia sido contestada anteriormente pela Halliburton. A High Court, no entanto, não vislumbrou impedimento do Sr. Kenneth Rokison QC e o nomeou como árbitro presidente, o que não foi objeto de recurso da Halliburton.
Em dezembro de 2015, o Sr. Rokison aceitou a nomeação da Chubb para atuar como árbitro em uma nova arbitragem, instaurada pela Transocean, que também dizia respeito ao incidente da plataforma de petróleo. Apesar de ter informado suas nomeações em arbitragens envolvendo a Chubb na nova arbitragem instaurada pela Transocean, incluindo aquela relativa à arbitragem proposta pela Halliburton relativa à plataforma Deepwater Horizon, o árbitro não informou à Halliburton acerca de tal nomeação. No ano seguinte, o Sr. Rokison foi nomeado árbitro substituto em outra arbitragem relacionada à plataforma Deepwater Horizon, envolvendo a Transocean e uma seguradora diferente, sem que tenha revelado tal nomeação à Halliburton.
Em novembro de 2016, a Halliburton descobriu que o Sr. Rokison estava atuando como árbitro em outros procedimentos com objetos e partes similares e, com base nas Diretrizes da IBA sobre Conflitos de Interesses em Arbitragem Internacional (“IBA Guidelines”), questionou sua independência e imparcialidade. O árbitro, por sua vez, justificou a sua omissão por um equívoco quanto à necessidade de observância às IBA Guidelines naquele momento da arbitragem e reiterou o seu compromisso com a imparcialidade do procedimento arbitral. Além disso, ressaltou que, na sua visão, havia diferenças relevantes entre os procedimentos e, ainda, que não haveria nenhum dano à arbitragem proposta pela Halliburton, colocando-se à disposição das partes, no entanto, para renunciar à sua função de árbitro nos demais procedimentos, iniciados em data posterior à arbitragem iniciada pela Halliburton, caso assim desejassem.
Apesar disso, a Halliburton impugnou o árbitro e, em dezembro de 2016, fez um pedido à High Court para substituí-lo, o que foi indeferido. A Halliburton apresentou um recurso à decisão, mas o Tribunal de Apelações manteve o entendimento da instância inferior, levando a um novo recurso da Halliburton, que submeteu o caso à Suprema Corte do Reino Unido.
A Halliburton, em brevíssima síntese, alegou no recurso que haveria risco à independência e imparcialidade do árbitro pois: (i) a Chubb, parte em arbitragens relacionadas, teria vantagem sobre a Halliburton, que desconhecia os demais procedimentos, já que poderia influenciar o Sr. Rokison com fatos e argumentos não suscitados no procedimento em curso entre as partes; (ii) a Chubb seria capaz de se comunicar com o Sr. Rokison na segunda arbitragem, por meio de suas apresentações e através da apresentação de provas relativas a temas que podem ser relevantes para a arbitragem iniciada pela Halliburton; (iii) o Sr. Rokison teria falhado em revelar sua nomeação à Halliburton e, com isso, a teria impedido de formar seu ponto de vista acerca da hipótese dos fatos novos virem a macular a sua independência e imparcialidade, o que também teria a impedido de propor formas para mitigar eventuais prejuízos; e (iv) o Sr. Rokison não teria dado a devida importância ao interesse da Halliburton em ter um procedimento justo, direito garantido às partes.
Ao analisar o caso, em novembro de 2020, a Suprema Corte do Reino Unido aplicou o que chamou de "teste objetivo do observador imparcial e informado"[7]. Por meio do teste, reconheceu que a nomeação de um árbitro em múltiplas arbitragens relativas ao mesmo assunto pode dar origem a uma aparência de parcialidade e ressaltou a obrigação derivada do "Arbitration Act 1996", que sujeita o árbitro ao dever de revelação. Todavia, a Suprema Corte entendeu, fundamentadamente, que a possibilidade e aparência de que há uma falha relativa à parcialidade não são suficientes para, de fato, se considerar que há uma violação do árbitro a tal dever, pois isso demanda prova efetiva.
A Suprema Corte, portanto, rejeitou por unanimidade a decisão do recurso da Halliburton. Embora tenha reconhecido que o Sr. Rokison violou seu dever de revelação, considerou que um observador imparcial e informado não inferiria uma possibilidade real de parcialidade sobre o Sr. Rokison, porque: (i) o árbitro não possuía certeza de se havia um dever legal de revelação, nos termos da lei inglesa vigente na data da audiência de destituição ocorrida em janeiro de 2017; (ii) as arbitragens subsequentes começaram vários meses após a arbitragem da Halliburton; (iii) os advogados da Halliburton não contestaram a declaração do Sr. Rokison de que não houve sobreposição material entre os casos; (iv) o Sr. Rokison não recebeu nenhum benefício financeiro secreto; e (v) a conduta do Sr. Rokison em resposta ao questionamento da Halliburton foi "cortês, moderada e justa", não mostrando nenhuma base para inferir sua imparcialidade.
Desde que proferida a emblemática decisão, demais tribunais[8] têm aplicado o teste sugerido pela Suprema Corte do Reino Unido, de modo a diferenciar o cumprimento do dever de revelação a uma violação ao dever de imparcialidade. Nesse sentido, tem se decidido que (i) não há presunção de que uma circunstância que "aparenta" que o árbitro possa estar enviesado, de fato, gere, por consequência, uma violação ao seu dever de imparcialidade e independência; (ii) não é suficiente uma falha do árbitro em revelar fatos que possam ser de interesse das partes para que haja, por consequência, uma violação ao dever de imparcialidade, de modo a se macular o procedimento arbitral. É necessário, em ambos os casos, que se analise se a falha de revelação do árbitro ou aparente circunstância de parcialidade, foi suficiente, no caso concreto, para causar algum dano efetivo ao procedimento arbitral e ao seu julgamento imparcial.
Os parâmetros reconhecidos pela Suprema Corte para a aferição do dever de revelar são próximos às disposições legais brasileiras quanto à referida obrigação. Conforme reconhecido no caso Halliburton v. Chubb, os julgadores deverão divulgar os fatos que poderiam servir de base para uma "apreensão razoável de falta de imparcialidade"[9]. No Direito Brasileiro, deverá o árbitro, com base no art. 14, parágrafo 1o da LArb, "revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvtida justificada quanto à sua imparcialidade e independência" (grifamos). A disposição legal, que persiste válida ao longo do procedimento arbitral, exige que a dúvida quanto à interferência do fato a ser revelado seja justificada, não sendo exigida a declaração absoluta de todo e qualquer fato, assim como se reconhece no Reino Unido, pela doutrina especializada[10] e em diversas outras decisões proferidas por tribunais arbitrais[11].
Assim, com base nos precedentes recentemente estabelecidos, resta evidente que, não obstante a importância vital da observância dos árbitros ao dever de revelação para fomentar a confiança das partes em seus julgadores, impor ao árbitro a obrigação indiscriminada de revelar todos e quaisquer fatos que possam, hipoteticamente, ser relevantes para uma das partes consistiria em encargo cujo cumprimento é excessivamente oneroso e que poderia ser – e, sem dúvida, seria – utilizado nas arbitragens como verdadeira tática de guerrilha, evidenciando sua total ausência de razoabilidade. Afinal, levaria à criação de critérios irreais e extremamente onerosos de revelação, inviabilizando a execução dos procedimentos arbitrais, criando uma fonte infinita de nulidades[12].
Justamente por isso, com base no julgamento do caso Halliburton v. Chubb, o dever de revelação tem sido cada vez mais compreendido como uma norma instrumental, que serve de verdadeiro meio para evitar que haja alguma violação à independência e imparcialidade do árbitro. Dessa forma, sua inobservância, por si só, não leva à nulidade do procedimento, sendo necessária uma aferição concreta da (im)parcialidade do árbitro e de prejuízos à arbitragem. Trata-se da aplicação do mesmo racional do princípio da instrumentalidade das formas[13], com base no qual, para a validade do ato, basta que produza o resultado que objetiva, sem causar prejuízos.
Dessa forma, conclui-se que, caso um árbitro, por erro ou descuido, não revele fatos que, na prática, não ensejaram qualquer parcialidade, mas que, idealmente, deveriam ter sido revelados, não haverá nulidade procedimental. Corrobora com tal entendimento a inexistência de previsão legal de sanção a ser aplicada na hipótese de descumprimento do dever de revelação, enquanto, por outro lado, caso haja dúvidas subjetivas sobre independência e imparcialidade do árbitro, a sentença poderá ser anulada nos termos do art. 32, II, LArb.
Em suma, o mero desconforto da parte com a ausência de revelação, apesar de indesejado, não é suficiente para a configuração de violações aos deveres de independência e imparcialidade do árbitro. Além disso, mesmo que haja, efetivamente, quebra da obrigação de revelar, isso não macula, necessariamente, o procedimento arbitral, na medida em que, se o fato relativo ao qual o árbitro falhou em revelar não comprometer a parcialidade do árbitro no caso concreto, não deverá haver reconhecimento de nulidade. Este entendimento preserva a eficiência do procedimento arbitral e evita o desperdício de recursos das partes, ao assegurar a análise de imparcialidade do árbitro sem comprometer a higidez do procedimento.
[1] Advogada de Sergio Bermudes Advogados. Bacharel em Direito pela FGV Direito Rio. [2] Advogado de Sergio Bermudes Advogados. Bacharel em Direito pela PUC-Rio. [3] ALVIM, J. E. Carreira. Tratado Geral da Arbitragem. Belo Horizonte: Mandamento, 2005, p.14. [4] art. 31, Lei nº 9.307/96 (“LArb”). [5] Halliburton Company (Appellant) v Chubb Bermuda Insurance Ltd (formerly known as Ace Bermuda Insurance Ltd) (Respondent) [2020] UKSC 48 [6] Em sua decisão, a Suprema Corte ressaltou que o árbitro tem reputação e integridade reconhecidas de longa data. [7] O teste é baseado em demais decisões judiciais do Reino Unido e nas disposições da UNCITRAL Model Law, IBA Guidelines e LCIA Arbitration Rules. [8] Vejam-se relatos sobre casos julgados pela High Court da Malásia em: https://hsfnotes.com/arbitration/2021/04/21/malaysia-high-court-applies-halliburton-v-chubb-on-arbitrator-apparent-bias-and-the-duty-of-disclosure/. [9] “Under the common law, judges should disclose facts or circumstances which would or might provide the basis for a reasonable apprehension of lack of impartiality.” [10] BORN, Gary. International Commercial Arbitration, 3 ed. Kluwer Law International, 2021, pp. 1911-1916. [11] Cf. caso CCIP-CA - RG 18/16695 (França, Corte de Apelação de Paris); Suez v. Argentina (ICSID ); Republic of Argentina v. AWG Group Ltd. (Estados Unidos, Corte de Apelação do Distrito do Circuito de Columbia). [12] No mesmo sentido: PARK, William. “Foreword” in LUTTRELL, Sam. Bias Challenges in International Commercial Arbitration: The Need for a “Real Danger” Test. Kluwer Law International, 2009, p. Ix e LAMAS, Natália Mizrahi, 'Note: L. H. DE S. F. v. B. I. P. E A. S/A., First Civil Court of Appeals of the State of São Paulo, Appeal No. 1056400-47.2019.8.26.0100, 11 August 2020. Revista Brasileira de Arbitragem, v. 68, p. 135-152, out.-dez. 2020. [13] LIEBMAN, Manual de direito processual civil, v. I, 3a ed.. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 328.
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