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Arbitragem e American Depositary Receipts - ADRs

Atualizado: 16 de mar. de 2022

Bruno Barreto de A. Teixeira[1]


O objetivo deste artigo é examinar a possibilidade de detentores das American Depositary Receipts (ADRs) instaurarem arbitragens fundadas em convenções arbitrais inseridas em estatutos sociais das companhias emissoras dos papéis. Abordaremos a relevância do consentimento para a arbitragem, a natureza das ADR, e a vinculação de seus titulares à cláusula arbitral do estatuto.


A existência de manifestação de vontade das partes de submeter litígios decorrentes daquela relação à arbitragem, seja ela explícita ou implícita[2], é requisito de validade não só da convenção de arbitragem em si, como também da jurisdição do tribunal arbitral. No caso da vinculação dos detentores de ADRs à cláusula compromissória estatutária, o ponto essencial a ser analisado é se eles consentiram para a resolução de disputas por arbitragem.


A convenção de arbitragem é o meio pelo qual as partes declaram interesse em submeter litígios decorrentes de sua relação jurídica à arbitragem[3]. Na visão mais moderna, a convenção de arbitragem é qualificada como negócio jurídico autônomo ao contrato principal (por força da aplicação do princípio da autonomia da cláusula compromissória)[4], de natureza processual/jurisdicional[5], por meio do qual as partes, ao mesmo tempo, afastam a jurisdição estatal e a transferem ao tribunal arbitral[6].

Por conta desses efeitos causados pela convenção de arbitragem, a legislação exige, como regra comum no direito comparado, o consentimento de todas as partes da mesma relação jurídica como requisito essencial de sua validade. É assim, por exemplo, que dispõe o artigo 4º da Lei 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”), a Seção 2 do Federal Arbitration Act (“FAA”), o artigo 1.442 do Code de Procédure Civile francês (“CPC francês”), o §1.029 do Zivilprozessordnung alemão (“ZPO”) e o artigo 7º da Lei-Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional (“UNCITRAL”).


Como a jurisdição do tribunal arbitral deriva da própria convenção de arbitragem, o poder jurisdicional do tribunal em determinar o limite, alcance e escopo de sua jurisdição passa, necessariamente, pela averiguação da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem. Em outras palavras, o exercício, pelo tribunal, do princípio do Kompetenz-Kompetenz, nada mais é do que, na essência, averiguar se a convenção de arbitragem existe, é válida e eficaz.

Esta é a lógica da regra. O artigo 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem, que grava o princípio do Kompetenz-Kompetenz na Lei brasileira, afirma que “[c]aberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória.”. Seguem nesta mesma linha o artigo 1466 do CPC francês, o artigo 1040(1) do ZPO e o artigo 16(1) da Lei-Modelo da UNCITRAL.


Entretanto, diversos precedentes estabelecem que o tribunal arbitral não terá jurisdição (nem para averiguar sua própria jurisdição) nos casos em que a convenção de arbitragem seja manifestamente inexistente, inválida ou ineficaz. Essa linha de raciocínio tem por origem dois precedentes da Supreme Court of the United States (“SCOTUS”): (i) em Prima Paint v. Flood & Conklin[7], a SCOTUS decidiu que uma impugnação especificamente à manifesta nulidade ou anulabilidade da convenção de arbitragem pode ser feita perante as Cortes estatais; e (ii) em First Options v. Kaplan[8], a SCOTUS decidiu que o tribunal arbitral apenas poderia exercer as prerrogativas oriundas do Kompetenz-Kompetenz caso as partes tenham acordado dessa forma na convenção de arbitragem.


Mesmo entendimento vem das Cortes alemãs. A Bundesgerichthof (“BGH”) – a corte mais alta na jurisdição alemã para matérias não-constitucionais – decidiu, já em 2005, que “antes de uma decisão sobre a validade da cláusula compromissória, o tribunal estatal não está obrigado a esperar a decisão do tribunal arbitral sobre a competência” (tradução livre)[9].


O STJ seguiu o mesmo entendimento no REsp 1.602.076/SP, com acórdão de lavra da Min. Nancy Andrighi. Neste precedente, o STJ decidiu que “o Poder Judiciário pode, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral ‘patológico’, i.e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula instituidora da arbitragem, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral[10].


Sendo o consentimento, portanto, elemento essencial de validade da convenção arbitral, sua ausência importaria, prima facie, sua manifesta invalidade. Portanto, ainda que no entendimento majoritário da doutrina e jurisprudência em matéria arbitral coubesse ao tribunal arbitral verificar a inexistência de sua jurisdição, fato é que, neste caso, parece haver guarida na jurisprudência americana, alemã e brasileira a tese de que poderia o Poder Judiciário, neste caso específico, averiguar se a cláusula compromissória seria aplicável aos detentores das ADR.


Para averiguar se os detentores de ADRs consentiram para a resolução de disputas por arbitragem, deve-se perquirir sua natureza jurídica. Compreendendo a finalidade e natureza do instituto, poderemos averiguar se seus detentores se equiparam, de alguma forma, aos acionistas para fins de vinculação à cláusula compromissória do estatuto social da Companhia emissora.


A ADR é, na definição da doutrina especializada “um recibo representativo de uma ação de uma empresa estrangeira que se encontra depositada em um banco no país de origem, negociado nos EUA”[11]. Estes recibos foram criados em 1927 pelo banco J. P. Morgan, e têm como finalidade facilitar a participação de investidores estadunidenses em bolsas estrangeiras[12].


Na emissão de ADRs, a relação se dá, diretamente, entre a Companhia emissora e o banco depositário nos EUA. As ações emitidas são adquiridas pelo banco estrangeiro, que emite recibos (papéis) representativos desta ação – as ADRs – para circulação no mercado de capitais estadunidense. Cada adquirente de ADR, então, detém, eminentemente, um título representativo desta ação, sem, contudo, deter diretamente a ação em si.


Os ADRs não são, portanto, “uma colocação de ações, mas sim de papéis (os recibos) lastreados em ações custodiadas”[13]. Nestes tipos de operações, o banco depositário monitora o pagamento de dividendos e, quando feito, os coleta e distribui aos titulares das ADRs. Igualmente, é o banco depositário quem exerce os direitos de acionista, como, por exemplo, o direito de voto[14].


Nos Estados Unidos, os ADRs são considerados “substitute security”, e não têm natureza de ação[15]. Num paralelo com o regime brasileiro, os ADRs seriam qualificados como “certificados de depósito”, ou seja, títulos “lastreados em ações de companhias sediadas no exterior por meio de uma instituição depositária, uma instituição financeira, nos termos do art. 43 da Lei das S.A.”[16]. Tais certificados, segundo Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, “não incorpora[m] direitos” de acionista[17].


Assim, nos parece que os ADRs não se confundem com as ações. Afinal, é o banco depositário das ADRs quem exerce o direito de propriedade, as prerrogativas e os direitos de acionista. Entendemos, assim, que, para fins societários, os titulares das ADRs não se equiparam, para todos os fins, com os acionistas da Companhia emissora.


A questão que se põe agora é: os detentores de ADRs se equiparam, de alguma forma, aos detentores de ações, para fins de vinculação ao estatuto social da Companhia emissora (e, consequentemente, à cláusula compromissória deste)? Parece-nos que a resposta é negativa. Inclusive, essa é a visão da jurisprudência comparada sobre o tema.


O leading case é a decisão da United States Court of Appeals for the Second Circuit (“2d Cir.”) no caso In re Petrobras’ securities[18]. Trata-se de class action, movida por acionistas e detentores de ADRs e de Notas emitidas pela Petrobras, contra a Companhia e várias de suas subsidiárias, seus diretores e auditores independentes, perante a United States District Court for the Southern District of New York (“SDNY”). Os autores buscam indenização por danos causados pela desvalorização de suas ações em razão de informações falsas e enganosas relativamente à situação financeira e à integridade da administração da Petrobras.


A grande controvérsia havida na ação coletiva foi sobre a composição do polo ativo da demanda. Os Réus argumentavam, em suma, que os acionistas e detentores de ADRs se vinculariam, indiscriminadamente, à cláusula compromissória prevista no estatuto social da Petrobras, e que, por isso, as Cortes americanas não teriam jurisdição sobre a demanda.


O SDNY decidiu que os detentores de ações da Petrobras haviam se vinculado à cláusula compromissória constante do estatuto social da Petrobras e que, por isso, a class action não poderia seguir com estes no polo ativo. Entretanto, decidiu o Juízo que os detentores das ADR’s e de notas da Companhia poderiam, sim, prosseguir com a class action. Segundo o SDNY, os ADRs são valores mobiliários distintos dos ativos subjacentes, e, portanto, seus detentores não teriam se vinculado diretamente à cláusula compromissória estatutária.


Como visto, pela própria natureza das ADRs, seus titulares não deveriam, pelo menos em teoria, ser equiparados aos acionistas da Companhia para fins de vinculação à cláusula compromissória do estatuto social. Como os títulos são emitidos nos EUA – e, portanto, sujeitos à regulamentação de mercado daquele país – parece-nos razoável entender que os titulares das ADRs poderiam buscar o Judiciário estadounidense para pleitear eventuais violações das normas de mercado daquele país. Este parece, também, ser o entendimento da doutrina especializada[19].


Um ponto interessante levantado pela análise da decisão é se a cláusula compromissória poderia expressamente prever que os detentores de ADRs se vinculariam, também, à arbitragem estatutária. A decisão do SDNY deixa bastante claro que, existindo consentimento claro dos detentores de ADR à convenção de arbitragem, esta poderia, sim, vincular os detentores de ADRs. Entretanto, tal disposição deve estar explicitada na cláusula.


Não encontramos, na jurisprudência brasileira, caso semelhante para fins de comparação. Entretanto, o STJ, nos autos da CR 12844/US[20], com decisão de lavra da Ministra Presidente do STJ, Laurita Vaz, permitiu a citação de nacional brasileiro para responder à ação nos Estados Unidos, movida por detentor de ADRs, cuja causa de pedir tem como base “denúncia de violação de leis federais de valores mobiliários”. Naquela ocasião, o STJ indeferiu a objeção levantada pelo Requerido, que arguia que o Estatuto Social da Companhia da qual era administrador prevê cláusula arbitral, e, por isso, a citação para responder à ação em foro estrangeiro incompetente violaria a ordem pública.


Em conclusão, os detentores de ADRs não são considerados acionistas da companhia emissora e, portanto, não estariam vinculados automaticamente à convenção de arbitragem estatutária, via de regra. Entretanto, caso a redação da convenção preveja expressamente a vinculação dos detentores de ADRs, os efeitos da convenção de arbitragem se estenderão, também, aos portadores de tais papéis, por força do exercício, pelas partes, de sua liberdade de contratar.


 

[1] Doutorando em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito (LL.M.) pela New York University School of Law (NYU). Coordenador-Adjunto do Grupo de Estudos em Arbitragem e Direito do Comércio Internacional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Advogado no Rio de Janeiro. [2] “[T]he most important function is that of making it plain that the parties have consented to resolve their disputes by arbitration. This consent is essential. Without it, there can be no valid arbitration. The fact that international commercial arbitration rests on the agreement of the parties is given particular importance by some continental jurists. The arbitral proceedings are seen as an expression of the will of the parties and, on the basis of party autonomy (l'autonomie de la volonté) it is sometimes argued that international commercial arbitration should be freed from the constraints of national law and treated as denationalised or delocalised.” BLACKABY Nigel et al. Redfern and Hunter on International Arbitration, 6. ed. Oxford: Oxford Press, 2015, p. 18. [3]A Lei de Arbitragem incorporou os conceitos tradicionais de compromisso arbitral e cláusula compromissória, equiparando seus efeitos. Para afastar qualquer dúvida, o diploma legislativo explicitou que a cláusula compromissória passava a ser suficiente, por si só, para compelir judicialmente as partes eventualmente recalcitrantes a submeterem as controvérsias pactuadas ao juízo arbitral. Recusando a parte demandada a fazê-lo, a sentença que determinar a instauração do procedimento arbitral valerá como compromisso. Assim, uma vez firmada a cláusula compromissória, os contratantes ficam vinculados a este acordo, devendo cumprir a obrigação de fazer nele prevista: a instituição da arbitragem.” TIBURCIO, Carmen. Cláusula Compromissória em Contrato Internacional: Interpretação, Validade, Alcance Objetivo e Subjetivo. Revista de Processo, v. 241, mar. 2015. p. 522. [4]What is traditionally meant by the autonomy of the arbitration agreement is its autonomy from the main contract in which it is found or to which it relates”. FOUCHARD, Philippe et al. Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration. Paris: Wolters Kluwer, 1999, p. 198. Sobre o tema: BATISTA MARTINS, Pedro A. Autonomia da cláusula compromissória. Disponível em http://batistamartins.com/autonomia-da-clausula-compromissoria/. Acesso em 05.08.2021. [5]Pode-se hoje dizer, com tranquilidade, que a cláusula arbitral é um negócio jurídico processual, eis que a vontade manifestada pelas partes produz desde logo efeitos (negativos) em relação ao processo (estatal) e positivos, em relação ao processo arbitral já que, com a cláusula, atribui-se jurisdição aos árbitros).” CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 102. [6]Segundo a sistemática adotada, tanto a cláusula quanto o compromisso excluem a jurisdição estatal, efeito que até o advento da Lei 9.307 /96 só era produzido pelo compromisso arbitral, ex vi do art. 301, IX, do Código de Processo Civil, em sua redação original. Tal efeito unificado da cláusula e do compromisso é condição sine qua non para o regular funcionamento da arbitragem.”. CARMONA, Carlos Alberto. Ob. cit., p. 16. [7]Accordingly, if the claim is fraud in the inducement of the arbitration clause itself -- an issue which goes to the ‘making’ of the agreement to arbitrate -- the federal court may proceed to adjudicate it.” Prima Paint Corp. v. Flood & Conklin Mfg. Co., 388 U.S. 395 (1967). [8]Courts should not assume that the parties agreed to arbitrate arbitrability unless there is ‘clea[r] and unmistakabl[e]’ evidence that they did so.” First Options of Chicago, Inc. v. Kaplan, 514 U.S. 938 (1995). [9] Original: “[D]as staatliche Gericht nicht gehalten, vor einer Entscheidung über die Schiedseinrede die Zuständigkeitsentscheidung des Schiedsgerichts.” BGH, 13.01.2005 - III ZR 265/03. [10] STJ. REsp 1.602.076/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. em 15.09.2016. [11] PINHEIRO, Juliano Lima. Mercado de capitais: fundamentos e técnicas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 104. [12] BRUNI, Adriano Leal. Globalização financeira, eficiência informacional e custo de capital: uma análise da emissão de ADRs brasileiros no período de 1992-2001. São Paulo: FEA/USP, 2002, p. 8. [13] NUSDEO, Fábio. O regime do investimento estrangeiro no Brasil – evolução recente. In: Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial, v. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 405–412. [14] Idem, ibidem. [15] ZAITZEFF, Roger M., Foreign Bank Participation in the United States Capital Markets: A Legal Perspective. In.: Touro Law Review, v.. 2, n. 19, 1986, p. 29. [16] PARENTE, Norma Jonssen. Mercado de Capitais. In.: CARVALHOSA, Modesto. Tratado de Direito Empresarial, v. IV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 181. [17] LAMY FILHO, Alfredo e BULHÕES PEDREIRA, José Luiz (coord). Direito das Companhias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 385. [18] In re Petrobras Securities Litigation, Case Number 14-cv-09662 (JSR). [19] “No caso em tela, tanto os investidores quanto a defesa da Petrobras tentaram, sem sucesso, alterar o que parece ser – à luz do precedente Morrison – o curso natural de litígios envolvendo companhias estrangeiras que simultaneamente emitem ações em mercados domésticos e ADSs na BVNI. Isto é: os pleitos relativos a ADSs são julgados nos Estados Unidos e a lei substantivamente aplicável é a americana; os pleitos relativos a ações emitidas fora dos Estados Unidos são julgados no país de emissão, e a lei substantivamente aplicável é, também, a do país de emissão” SALAMA, Bruno. In Re Petrobras Securities Litigation: validade e abrangência da cláusula arbitral. Revista Brasileira de Arbitragem, v. 55, p. 79-93. [20] CR 12.844/US. Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 23.8.2018.

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