Carolina Altberg Wanderley
1. Introdução
A arbitragem desportiva é um mecanismo de resolução de conflitos que se aplica especificamente às disputas que surgem no contexto esportivo, envolvendo atletas, clubes, federações e outras entidades desportivas. Esse procedimento é uma alternativa à jurisdição tradicional, sendo mais célere e adaptado às peculiaridades das atividades esportivas. As questões mais comuns envolvem temas como doping, transferências de jogadores, contratos, e elegibilidade para competições. O Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), é a principal instituição encarregada de mediar e decidir essas disputas, oferecendo um foro especializado que garante decisões rápidas e vinculantes.
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2.1. A Estrutura do Tribunal Arbitral do Esporte
Criado em 1984 por iniciativa do Comitê Olímpico Internacional (COI), o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) é hoje uma das mais requisitadas instituições arbitrais internacionais, com cerca de 900 casos por ano. Sua sede principal está localizada em Lausanne, Suíça, mas o TAS possui tribunais temporários em diversas cidades, especialmente durante grandes eventos esportivos, como os Jogos Olímpicos. Com o intuito de criar uma instância especializada para resolver disputas relacionadas ao esporte, de forma rápida, eficiente e independente, a estrutura do TAS conta com diferentes divisões e procedimentos de arbitragem.
i. Divisão Ordinária e Divisão de Apelação
O TAS possui duas divisões principais: a Divisão Ordinária e a Divisão de Apelação. A Divisão Ordinária trata de disputas contratuais comuns dentro do universo esportivo, como transferências de jogadores, remuneração de agentes e outros contratos comerciais entre atletas e organizações. Esses casos se assemelham às arbitragens comerciais tradicionais, com decisões geralmente confidenciais, sendo realizados com base em cláusulas arbitrais previamente acordadas pelas partes.
Por outro lado, a Divisão de Apelação é responsável por rever decisões de órgãos disciplinares de federações esportivas, como sanções relacionadas ao antidoping, match-fixing (manipulação de resultados) e elegibilidade de atletas para competições. A apelação oferece uma análise completa da disputa, por meio do exame detalhado de todos os aspectos do caso, tendo os árbitros poder de revisão plena dos fatos e da lei aplicável. Podem, inclusive, reformar totalmente a decisão inicial da federação ou órgão esportivo.
ii. Independência e Organização do Tribunal
A independência do TAS é garantida pelo Conselho Internacional de Arbitragem para o Esporte (ICAS), que administra o tribunal desde 1994, após sua separação formal do COI. O ICAS é responsável por formular a lista dos árbitros do TAS e por assegurar que a instituição mantenha sua autonomia e credibilidade internacional. Atualmente, a lista de árbitros inclui mais de 450 nomes de especialistas em direito desportivo e arbitragem internacional.
Cada caso submetido ao TAS é julgado por um painel de um ou três árbitros, conforme acordado entre as partes ou determinado pelas regras do TAS. Os árbitros são nomeados a partir da lista do TAS, e as partes têm o direito de impugnar a nomeação de um árbitro caso existam suspeitas de falta de imparcialidade ou independência.
iii. Procedimento Arbitral
O procedimento no TAS é flexível e adaptável às necessidades das partes envolvidas, conforme permitido pelas regras da instituição, que foram desenvolvidas para garantir a celeridade e a eficácia das decisões. Em síntese, o processo se inicia com a submissão de um pedido de arbitragem ou apelação, que inclui os fatos e as alegações jurídicas da parte requerente. Após a nomeação do painel arbitral, as partes são ouvidas, e o tribunal pode convocar testemunhas e especialistas para fornecer pareceres técnicos sobre o caso.
O idioma da arbitragem pode ser inglês, francês ou espanhol, de acordo com a escolha das partes, e a sede legal do TAS é sempre Lausanne, independentemente de onde as audiências ocorram fisicamente. O tribunal está sujeito à Lei Federal Suíça sobre o Direito Internacional Privado, o que reforça seu caráter internacional ao padronizar a base legal aplicável, assegurando a neutralidade das decisões independentemente da origem das partes envolvidas.
Portanto, a estrutura do TAS, com sua divisão entre questões ordinárias e de apelação, assegura uma plataforma especializada para resolver disputas no esporte. Essa organização permite decisões imediatas, que se ajustam à urgência dos eventos esportivos.
2.2. Arbitragem nos Jogos Olímpicos
Um dos aspectos mais notáveis da atuação do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) é a arbitragem nos Jogos Olímpicos, especialmente pela rapidez e eficiência com que as disputas são resolvidas, garantindo que os litígios não interfiram no curso das competições. Essa arbitragem ocorre por meio de uma Divisão Ad Hoc, criada especificamente para os jogos, e tem como objetivo principal garantir que as questões sejam resolvidas de forma justa, rápida e sem custos para as partes envolvidas.
i. Criação da Divisão Ad Hoc e Funções
A Divisão Ad Hoc foi criada antes dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, e desde então tem sido uma parte integrante de todos os Jogos Olímpicos. Ela é composta por um grupo de 12 (doze) árbitros nos Jogos de Verão e 9 (nove) nos Jogos de Inverno, todos especialistas em arbitragem desportiva e disponíveis para atuar vinte e quatro horas por dia durante o evento. A principal função dessa divisão é resolver disputas que surgem no decorrer dos Jogos, para evitar que procedimentos longos possam prejudicar a participação dos atletas e o andamento das competições.
As disputas que chegam à Divisão Ad Hoc abrangem uma ampla variedade de questões, desde a elegibilidade de atletas até violações de regras antidoping. Um exemplo marcante de sua atuação foi o caso da patinadora russa Kamilia Valieva, nos Jogos de Inverno de Pequim 2022, em que o TAS precisou decidir rapidamente sobre a sua elegibilidade após um teste positivo de doping. Nesse caso, o tribunal considerou que os danos de não permitir sua participação eram maiores do que os de permitir que competisse, demostrando a importância da proporcionalidade e da análise de urgência nas decisões.
ii. Procedimentos e Critérios de Decisão
A resolução das disputas ocorre no idioma escolhido pelas partes, e os árbitros podem conduzir as audiências de forma presencial ou, mais recentemente, por videoconferência, como ocorreu durante a pandemia de COVID-19.
As decisões da Divisão Ad Hoc seguem os princípios da Carta Olímpica, os regulamentos das federações esportivas e as normas gerais de direito aplicáveis. Os árbitros têm total liberdade para apreciar as provas e decidir com base na proporcionalidade e na equidade, fatores essenciais para garantir que as decisões sejam adequadas às circunstâncias excepcionais dos Jogos Olímpicos. Além disso, as partes envolvidas não arcam com custos relativos à arbitragem, sendo a única responsabilidade financeira dos litigantes o pagamento dos honorários de seus advogados e das despesas com testemunhas ou especialistas.
iii. Limitações e Exclusões
Embora a Divisão Ad Hoc do TAS tenha uma jurisdição ampla sobre questões desportivas, existem algumas limitações importantes. Disputas relacionadas ao "campo de jogo", ou seja, decisões tomadas por árbitros ou juízes durante as competições, geralmente não são revisadas, a menos que haja alegações de fraude ou corrupção. Essa limitação visa a preservar a integridade das competições e evitar a interferência excessiva da arbitragem nas decisões técnicas que fazem parte do espírito do esporte.
Outro aspecto relevante é que a Divisão Ad Hoc não pode substituir os processos internos das federações esportivas. Ou seja, para que uma disputa seja levada ao TAS durante os Jogos Olímpicos, a parte interessada deve ter esgotado todos os recursos internos previstos nos regulamentos da federação ou do Comitê Olímpico Nacional.
Desse modo, esta divisão representa um aspecto fundamental do TAS, ao assegurar que disputas durante os Jogos Olímpicos sejam resolvidas rapidamente, mantendo a integridade e o fluxo das competições.
2.3. Desafios e Tendências Futuras
Embora a arbitragem desportiva tenha se mostrado um mecanismo essencial para a resolução de disputas no mundo esportivo, especialmente durante os Jogos Olímpicos, com a evolução do esporte e o surgimento de novas questões surgem desafios significativos, demandando adaptação e inovação. A seguir serão abordados alguns dos principais desafios e tendências futuras que o TAS pode enfrentar.
i. Inclusão dos eSports na Arbitragem Desportiva
Uma das principais tendências que podem impactar a arbitragem desportiva é a crescente popularidade dos esportes eletrônicos, conhecidos como eSports. À medida que os eSports ganham reconhecimento internacional e começam a ser considerados para inclusão nos Jogos Olímpicos, é provável que disputas relacionadas a essa modalidade também comecem a ser submetidas à arbitragem desportiva.
Os eSports apresentam características distintas dos esportes tradicionais, especialmente no que diz respeito às regras, aos contratos de patrocínio e à propriedade intelectual envolvida nos jogos. Além disso, questões relacionadas ao controle antidoping e à integridade das competições são cada vez mais debatidas no âmbito dos eSports, o que pode gerar um aumento na demanda por resolução de disputas através do TAS.
A inclusão dos eSports nas Olimpíadas e em outras competições internacionais pode exigir do TAS uma adaptação não apenas de suas regras procedimentais, mas também de seus especialistas, que precisarão estar familiarizados com as especificidades desta indústria emergente. A tendência é que o tribunal precise desenvolver novos parâmetros para lidar com disputas envolvendo desenvolvedores de jogos, jogadores profissionais e ligas de eSports, garantindo que essas questões sejam tratadas de forma adequada.
ii. Garantia de Acesso à Justiça e Equidade Financeira
Outro desafio importante que o TAS enfrenta, especialmente durante os Jogos Olímpicos, é a equidade no acesso à justiça para atletas de diferentes contextos financeiros. Muitos atletas, especialmente de países menos desenvolvidos ou com menos recursos, podem ter dificuldade em financiar uma defesa adequada ou contratar advogados especializados para representá-los em uma disputa arbitral. Isso gera um desequilíbrio que pode comprometer a igualdade no tratamento das partes envolvidas.
A Divisão Ad Hoc do TAS, que atua nos Jogos Olímpicos, oferece arbitragem gratuita, mas os atletas ainda são responsáveis pelos custos de seus advogados, testemunhas e especialistas. Em resposta a essa preocupação, têm sido discutidas iniciativas de advogados pro bono para auxiliar atletas financeiramente desfavorecidos durante os Jogos, proporcionando uma representação qualificada. Essas iniciativas pro bono estão em processo de aprimoramento, e têm sido ampliadas gradualmente com o apoio de entidades internacionais, federações esportivas e associações advocatícias locais.
iii. Proteção dos Direitos dos Atletas e o Papel dos Regulamentos Antidoping
O antidoping continua sendo uma área crítica para a arbitragem desportiva, especialmente nos Jogos Olímpicos, onde a integridade das competições é uma prioridade absoluta. Nos últimos anos, o aumento da complexidade das substâncias proibidas, bem como o desenvolvimento de novos métodos de detecção, têm gerado disputas cada vez mais sofisticadas, que exigem uma análise técnica detalhada por parte dos árbitros.
Casos como o citado anteriormente, de Kamilia Valieva, nos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim 2022 ilustram desafios complexos para a arbitragem desportiva. Valieva, uma patinadora russa de 15 anos, testou positivo para a substância proibida trimetazidina antes dos jogos, mas o resultado foi divulgado durante as competições em Pequim. O Comitê Olímpico Internacional (COI) e a Agência Mundial Antidoping (WADA) pediram sua suspensão imediata, mas sua condição de “atleta protegida”, por ser menor de idade, complicou a decisão.
O caso foi então levado à Divisão Ad Hoc do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), que permitiu a participação de Valieva até a conclusão da investigação, destacando o impacto potencial de uma suspensão imediata sobre sua carreira e saúde psicológica. A decisão gerou controvérsia: alguns viram isso como impunidade, enquanto outros defenderam a presunção de inocência e a proteção de jovens atletas, especialmente considerando sua vulnerabilidade à influência de treinadores e equipes.
Esse caso evidenciou a necessidade de protocolos específicos para atletas jovens e de um equilíbrio entre decisões rápidas e proteção psicológica. Além disso, ressaltou a importância de avaliar o papel das instituições e dos adultos ao redor desses atletas. Para o TAS, o episódio traz a perspectiva de expandir suas diretrizes, reforçando tanto a proteção de atletas vulneráveis, quanto a integridade das competições. O equilíbrio entre a punição adequada para a violação das regras e a proteção dos direitos dos atletas, especialmente quando as circunstâncias não são totalmente claras, continuará a ser uma questão relevante para a arbitragem desportiva.
Além disso, o TAS deve se preparar para lidar com novos tipos de disputas relacionadas ao uso de tecnologias de performance, como dispositivos de monitoramento e aprimoramento físico. À medida que essas tecnologias se tornam mais prevalentes no esporte, é possível que surjam disputas sobre a legalidade e a ética de seu uso, o que trará novos desafios para a arbitragem desportiva.
3. Conclusão
É possível concluir que a arbitragem desportiva, com destaque para o papel do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), tornou-se um instrumento indispensável para garantir a resolução eficiente de disputas no universo esportivo, especialmente durante os Jogos Olímpicos. A atuação ágil e especializada do tribunal assegura que as competições ocorram de forma justa e organizada, sem interferências indevidas.
O futuro traz desafios complexos. Porém, o sucesso do TAS está em sua capacidade de se reinventar, mantendo o equilíbrio entre a rapidez das decisões e a garantia de um julgamento adequado, essencial para a manutenção da integridade esportiva em um cenário global cada vez mais complexo.
Texto bem ilustrativo sobre uma matéria que ainda não possuía conhecimento. Parabéns para a autora.