José Marinho Séves Santos[1]
Guilherme Monegalha[2]
O advento da Lei nº 13.129/2015, que alterou a Lei nº 9.307/96 (Lei de Arbitragem – LArb), afastou qualquer dúvida remanescente sobre a possibilidade de a Administração Pública se submeter à arbitragem. Com a mudança, a LArb passou a autorizar expressamente, em seu artigo 1º, §1º, a participação da Administração direta e indireta em arbitragens.
A mudança trouxe novos questionamentos. A arbitrabilidade divide-se em duas espécies: subjetiva e objetiva. Ao passo que a LArb encerrou as dúvidas acerca da primeira, não foi capaz de as dirimir no que toca à segunda. Isto porque a define a partir de dois conceitos jurídicos amplos: patrimonialidade e disponibilidade, cuja interpretação suscita divergência doutrinária. Neste post, trazemos uma proposta de operacionalização destes conceitos, em linha com os avanços mais recentes da literatura especializada, sobretudo no âmbito do Direito Administrativo.
No que tange à patrimonialidade, esta se configura não apenas quando a prestação se apresenta revestida de cunho pecuniário[3], mas também pela aptidão de o inadimplemento ser reparado, compensado ou neutralizado por medidas com conteúdo econômico[4]. Um caso clássico é o dever de confidencialidade. Ainda que não comporte um conteúdo econômico imediato, o descumprimento deste acarreta, quase sempre, para a parte inadimplente o pagamento de uma compensação de cunho pecuniário.
Se a patrimonialidade não gera grandes controvérsias na doutrina, o mesmo não se pode afirmar da disponibilidade. O Direito Administrativo brasileiro foi erigido em torno dos princípios da indisponibilidade do interesse público e da supremacia do interesse público sobre o privado. Muitos autores, assim, insurgiram-se contra a possibilidade de a Administração Pública participar de arbitragens, alegando que a existência de um interesse público em litígio redundaria, sempre, em sua inarbitrabilidade[5], decorrente de sua indisponibilidade.
Este posicionamento foi superado pela doutrina. Como destacam Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara[6], o princípio da indisponibilidade do interesse público não deve ser tratado como um princípio-regra, mas sim como princípio-valor, vinculando a ação das autoridades aos fins que se coadunam com o interesse da sociedade. Desse modo, seria equivocada qualquer interpretação que lance mão do referido princípio para afastar a possibilidade de a Administração Pública se utilizar de métodos alternativos de solução de disputa, dado que o seu emprego pode coincidir com o interesse da sociedade.
Também há posicionamentos no sentido de que apenas os interesses públicos secundários seriam arbitráveis[7]. Esta tese foi acolhida pelo Estado do Rio de Janeiro, por ocasião do Decreto nº 46.245/2018, que dispõe, em seu artigo 1º, parágrafo único, que “entende-se por conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis as controvérsias que possuam natureza pecuniária e que não versem sobre interesses públicos primários”.
A nosso ver, para fins de definição da arbitrabilidade objetiva, o interesse público é um parâmetro descartável. Partimos de três premissas.
Em primeiro lugar, a arbitragem não pode ser confundida com o instituto da transação. Ao submeter uma discussão à arbitragem, as partes não estão abrindo mão de seus direitos. A arbitragem é método heterônomo de resolução de disputas. Assim, a existência de interesse público não é apta a impedir a arbitrabilidade de qualquer controvérsia decorrente do contrato, uma vez que, obrigatoriamente, ela seria decidida por um terceiro. Para fins de proteção do interesse público, não há diferença entre ser este árbitro ou juiz.
A segunda premissa é delineada por Eros Grau[8], que afirma não haver correlação entre disponibilidade de direitos patrimoniais e interesse público. A Administração Pública pode dispor de direitos patrimoniais, sem ofender o interesse público, pois a realização deste pode ser alcançada mediante a disposição daqueles[9]. Trata-se de premissa que encontra lastro nas alterações promovidas pela LINDB, especialmente nos artigos 20 e 26, orientando a tomada de decisão, pelo gestor, com base na ponderação das consequências de seus atos e dando maior liberdade para a celebração de acordos com particulares.
A terceira é a de que o atingimento do interesse público é critério de escolha da via arbitral, sendo empregado quando o gestor público avalia ser este o método mais adequado para a resolução de determinado conflito. Para isso, sugere-se a ponderação das vantagens da arbitragem[10], como celeridade e especialidade, sua capacidade de adequação às especificidades do litígio e a estrutura de custos envolvida – a arbitragem, embora possua custos de entrada mais elevados que o Poder Judiciário, apresenta custos de transação e oportunidade mais baixos[11], que podem se revelar vantajosos para a Administração Pública.
O parâmetro mais adequado para definir a arbitrabilidade objetiva é o da negociabilidade. Sundfeld e Câmara pontuam que apenas os atos de gestão são negociáveis, o que afastaria, portanto, a arbitrabilidade dos atos de império. Alexandre Aragão, por sua vez, assevera que a negociabilidade encontra justificativa na procedência normogenética do direito. Neste caso, seriam negociáveis apenas os direitos que possuem origem negocial[12].
A solução parece-nos estar centrada no que há de consenso entre essas teorias: não será arbitrável tão somente o direito (i) que possui origem heterônoma e (ii) que não comporta algum grau de negociabilidade por parte do administrado. Além disso, ainda que o direito seja considerado como indisponível, eventuais efeitos patrimoniais a ele inerentes serão arbitráveis. Esta fórmula favorece a operacionalização do parâmetro da negociabilidade, privilegiando o instituto da arbitragem, na medida em que expande o rol de direitos arbitráveis.
Em primeiro plano, deve-se verificar se o direito tem como origem a lei ou a vontade das partes. Concluído que o direito tem como origem a lei, deve-se questionar, em segundo plano, se a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo o concurso volitivo do administrado. Caso a resposta seja negativa e se conclua que o direito é indisponível, deve-se questionar, por fim, se este gera efeitos patrimoniais às partes contratantes.
As sanções administrativas previstas na Lei nº 8.666/1993 (Lei de Licitação)[13] são aplicáveis a qualquer parte que celebre contrato com a Administração Pública. Isso não impede que as sanções sejam remediadas no caso concreto. As partes podem discutir e negociar a aplicação de multas, substituí-las por uma advertência, entre outras. Neste exemplo, a despeito de sua origem heterônoma, constata-se que a sanção administrativa admite certo grau de negociabilidade, o que faz atrair a sua arbitrabilidade.
Maysa Abrahão Tavares Verzola e Kamile Medeiros do Valle[14] destacam que diversas agências reguladoras vêm atuando no sentido de transacionar as sanções administrativas. Apontam as autoras que há larga previsão de acordos terminativos de processos administrativos sancionadores, por exemplo, no âmbito da Aneel, ANTT, ANS e Antaq[15].
Esta perspectiva, logicamente, levaria a conclusões ainda muito remediadas pela própria literatura arbitral. Por exemplo, ao consignar que o particular cometeu certo crime ambiental, o IBAMA age sob os auspícios de seu poder de polícia, conferido direta e expressamente por lei, e que independe do assentimento do particular. Neste caso, o particular não poderia se valer da arbitragem para discutir eventual nulidade do ato administrativo. Porém, ao passo que vem se admitindo, na doutrina e na jurisprudência, certa negociabilidade quanto às sanções ambientais, estas poderiam ser submetidas ao procedimento arbitral[16].
Ao fim e ao cabo, este posicionamento desencadeará um movimento já descrito por João Pedro Accioly e observado em países como a Alemanha, em que discutir a disponibilidade de um direito como pressuposto à sua composição arbitral será normativamente dispensável, sobressaindo-se, pois, o critério da patrimonialidade[17].
Reflexo disso é o entendimento de que os direitos indisponíveis serão igualmente arbitráveis, caso estes gerem efeitos patrimoniais aos contratantes. Ainda que se considere, por exemplo, que os poderes de alterar ou de resilir unilateralmente os contratos administrativos constituem-se como faculdades intangíveis da Administração, não haverá razão para se afastar a arbitrabilidade de suas repercussões patrimoniais no contrato.
Concluímos, nessa linha, defendendo uma operacionalização dos conceitos de disponibilidade e patrimonialidade que compõem os requisitos para a arbitrabilidade objetiva dos litígios envolvendo a Administração Pública que (i) enfatize a patrimonialidade do direito em disputa; e (ii) dê uma interpretação mais ampla à disponibilidade, com base no critério da negociabilidade, levando à redução progressiva do escopo de inarbitrabilidade dos litígios envolvendo entes da administração pública.
[1] Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Orientador do grupo de estudos de Arbitragem com a Administração Pública do CJA/CBMA. Advogado. [2] Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado do escritório Carvalho, Machado e Timm Advogados. [3] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. II. 28.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 21. [4] TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: consequências processuais (composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem, negócios processuais e ação monitória) – versão atualizada para o CPC/2015. Revista de Processo, v. 264, fev. 2017, p. 99. [5] Ver, por exemplo, MENDES, Renato Geraldo. Lei de Licitações e Contratos Anotada, 3.ed., Curitiba: Znt, 1998, p. 122. [6] SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. O Cabimento da Arbitragem nos Contratos Administrativos. Revista de Direito Administrativo, n. 248, mai.-ago. 2008, p.120. [7] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Arbitragem nos Contratos Administrativos. Revista de Direito Administrativo, n. 209, jul.-set. 1997, p. 84. Cf. LEMES, Selma. Arbitragem na Administração Pública: Fundamentos Jurídicos e Eficiência Econômica. São Paulo: Quartier Latin. 2007, p 135. [8] GRAU, Eros Roberto. Arbitragem e Contrato Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, n. 32, 2000, p. 20. [9] Vale apontar, conforme ressalva feita por Mauricio Morais Tonin que, neste caso, não há de se falar sequer em mitigação da indisponibilidade do interesse público, pois o que se vê na verdade é tão somente uma ponderação de interesses, que visa a corroborar o interesse público. TONIN, Mauricio Morais. Direito Patrimonial Disponível da Administração Pública: Tentativa de Definição. Revista Brasileira de Arbitragem, n. 59, jul.-set. 2018, p. 69. [10] PEREIRA, César. Arbitragem ou Poder Judiciário nos Litígios com a Administração Pública: Esboço de Roteiro para uma Escolha Racional. In. CASADO FILHO, Napoleão; QUINTÃO, Luísa e SIMÃO, Camila (org.). Direito Internacional e Arbitragem: Estudos em Homenagem ao Prof. Claudio Finkelstein. São Paulo. Quartier Latin. 2019, p. 587-614. [11] TIMM, Luciano Benetti, GUANDALINI, Bruno; RICHTER, Marcelo de Souza. Reflexões sobre uma análise econômica da ideia de arbitragem no Brasil. In. CARMONA, Carlos Alberto; LEMES, Selma Ferreira; MARTINS, Pedro Batista (org.). 20 Anos da Lei de Arbitragem: Homenagem a Petrônio R. Muniz. São Paulo: Atlas, 2017, p. 83-103. [12] ARAGÃO, Alexandre Santos de. A Arbitragem no Direito Administrativo. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 54, p. 25 – 63, jul-set., 2017. [13] A Lei nº 8.666/1993 foi substituída recentemente pela Lei nº 14.133/2021, promulgada no dia 1º de abril de 2021. Pelos próximos dois anos, entretanto, ambas estarão em vigor conjuntamente. [14] VERZOLA, Maysa Abrahão Tavares; VALLE, Kamile Medeiros do. A arbitrabilidade da sanção administrativa. Revista Brasileira de Arbitragem, n. 16, out.-dez. 2019, p. 45. [15] Ainda segundo as autoras, “em decisão recente, o TCU corroborou a possibilidade de que as agências reguladoras transacionem as sanções pecuniárias aplicadas aos entes privados contratados, tendo como causa principal a legitimidade da negociação entre as partes, a baixa efetividade das penalidades e o princípio da eficiência, que deve respaldar a atuação da Administração Pública tanto quanto o interesse público”. Acórdão n° 2121/2017, Rel. Min. Bruno Dantas, j. 27.09.2017. Idem, p. 45-46. [16] Nessa esteira, basta ver que a Lei n° 9.605/1998, responsável por abordar as sanções penais e administrativas relacionadas às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, dispõe, em seu art. 79-A, que os órgãos ambientais estão autorizados a celebrar TAC com os agentes de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras. Além disso, o Decreto n° 6.514/2008 prevê o procedimento de conversão de multa simples em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente na Seção VII, dispondo que a assinatura do TAC suspende a exigibilidade da multa e que a autoridade ambiental, ao deferir o pedido de conversão, aplicará sobre o valor da multa um desconto de 35 a 60%. [17] ACCIOLY, João Pedro. Arbitrabilidade objetiva em conflitos com a administração pública. Revista dos Tribunais, v. 101, p. 47–92, jul. 2020.