Felipe Morales[1]
A autonomia da vontade é o princípio basilar da arbitragem. Com ele as partes possuem plena (ou quase) liberdade para determinar quais são as leis aplicáveis a esse método alternativo de resolução de conflitos. Podendo escolher diferentes leis para serem aplicadas ao seu contrato, ao procedimento e à cláusula compromissória [2].
Todavia, há muitos anos, existe forte debate quanto à aplicação da Convenção das Nações Unidas para a Venda Internacional de Mercadorias (CISG) à cláusula compromissória. O objetivo do presente artigo é expor as diferentes visões acerca da aplicação da CISG à cláusula compromissória.
Em primeiro lugar, cabe destacar que a CISG, convenção ratificada por 85 países, incluindo o Brasil, Estados Unidos e Alemanha, é uma das principais normas do direito internacional, regulando, conforme estabelecido em seu preâmbulo a “formação de contratos de compra e venda internacional de mercadorias.” Além disso, ressalta-se que um dos grandes objetivos da CISG, além de padronizar as normas que regulam esses contratos, é promover o comércio internacional.
Com isso em mente, há de se questionar se podemos aplicar a CISG à cláusula compromissória. Enfrentando essa questão, o professor Stephan Kröll defende que a CISG não poderia ser a norma que rege a cláusula compromissória, já que os artigos 1º-3º da Convenção que a CISG claramente não possuem a intenção de reger uma cláusula compromissória [3].
Isso porque, a seu ver, o artigo 1º da Convenção determina que “Esta Convenção se aplica aos contratos de compra e venda de mercadorias entre partes que tenham seus estabelecimentos em Estados distintos.” Sendo assim, adota-se a visão de que a clausula compromissória, à luz do princípio da autonomia da cláusula compromissória, possui independência do contrato, não seria um contrato de compra e vendas de mercadorias, sendo um contrato procedimental que lida com o mecanismo de resolução de conflitos.
Nessa linha, também é defendido que o artigo 4º da CISG, que contempla uma lista de contratos que estão fora do escopo da CISG, não é uma lista exaustiva, portanto, mesmo que mecanismos de resolução de conflitos não estejam dispostos nessa lista, eles ainda estariam fora do escopo da convenção. Ademais, cabe destacar que, em dois momentos, a CISG menciona mecanismos de resolução de conflitos, sendo estes no artigo 19(3) e 81(1).
Entretanto, a corrente que rebate a aplicação da CISG entende que o artigo 19(3), mesmo fazendo menção direta a esses mecanismos, apenas afirma que a cláusula compromissória seria uma alteração material à proposta, portanto, não possui a intenção de regular a cláusula compromissória em si e sim, a proposta. Quanto ao artigo 81(1), defende-se que ele é apenas uma afirmação do princípio da autonomia da cláusula compromissória, ou seja, caso o contrato seja inválido, isso não afetará o mecanismo de resolução de conflitos.
Em relação a outra corrente, essa defende justamente o contrário, tendo como principais apoiadores a professora Ingeborg Schwenzer e o professor Peter Schlechtriem. Este afirma que devemos interpretar a convenção como um todo e, se olharmos para o artigo 4º, supramencionado, fica claro que a CISG não possui a intenção de excluir uma cláusula compromissória de seu escopo de aplicação. Na mesma lógica, Schwenzer, interpretando os artigos 19(3) e 81(1) da convenção, afirma que a própria escrita da CISG determina que a cláusula compromissória deveria estar no mesmo patamar que as demais previsões contratuais [4].
Essa visão também é corroborada por alguns precedentes importantes. Dentre eles, destaca-se o Shoes Case, julgado em julho de 2004 pela corte Federal da Alemanha, o Bundesgerichtshof (BGH), que atua como a suprema corte alemã, e pelo Spice case, julgado em novembro de 2020 pela mesma corte.
No julgamento de 2004, interpretando o artigo 4º da convenção, a corte decidiu que a CISG não excluiu expressamente a sua aplicação à cláusula compromissória, ou seja, atento ao artigo 1º(a), o contrato e a cláusula compromissória seriam regidos pela convenção. No que tange à recente decisão de 2020, utilizando-se do artigo 8º da convenção, que regula a declaração de vontade das partes, determinou que se as partes não excluíram a aplicação da CISG à cláusula compromissória, essa deveria ser a lei que a rege.
Em suma, repara-se que esse ainda é um tema muito controvertido dentro da doutrina e das decisões que as cortes vêm tomando, criando um grande debate sobre se podemos, ou não, aplicar essa convenção a uma cláusula compromissória. A questão ainda permanece em aberto.
[1]Graduando na FGV Direito Rio. Estagiário no Cescon Barrieu Advogados. Presidente do Núcleo de Mediação e Negociação da FGV Direito Rio. Orador na 29a edição do Vis Moot de Arbitragem.
[2] BORN, Gary. International Commercial Arbitration. 2001. p. 508.
[3] Kröll, S, Selected Problems Concerning the CISG`s Scope of Application: in Journal of Law and Commerce, 39 at 42 et seq (2005/06).
[4] Ingeborg Schwenzer; Florence Jaeger the Powers and Duties of an Arbitrator: Liber Amicorum Pierre A. Karrer (Shaughnessy and Tung (eds); Jan 2017.