Márcio Souza Guimarães[1]
Ao participar da comissão que contribuiu para a elaboração da Lei 14.112/2020, que reformou a Lei 11.101/2005, tive a oportunidade de sugerir a inserção de quatro modificações relativas à arbitragem, as quais, em síntese, serão tratadas nesse post.
A arbitragem é um método de resolução de litígios amplamente utilizado no Brasil, sendo as disputas uma marca intrínseca ao mundo empresarial, ao reunir uma série de diferentes interesses que naturalmente se contrapõem – empresários, acionistas, investidores, credores, dentre outros. Os conflitos de interesse tendem a aumentar significativamente no caso de uma crise econômico-financeira destes agentes econômicos. Nesta hipótese, a necessidade de uma solução célere e justa, proporcionada pela arbitragem, se torna ainda mais premente, considerando a função social desempenhada pela empresa e o consequente interesse público em sua preservação. A questão posta decorrente do equacionamento do binômio insolvência e arbitragem, na interpretação da eficácia da cláusula de arbitragem firmada por quem estiver submetido à insolvência.
Na hipótese de recuperação judicial, a capacidade legal do devedor não sofre alterações, bem como os contratos por ele previamente assinados também não são afetados pelo procedimento de reestruturação e se mantêm efetivos, devendo ser devidamente cumpridos. Assim, havendo cláusula de arbitragem em determinado contrato, deve ser honrada sem qualquer restrição. A validade da cláusula previamente negociada é indiscutível, sendo indiferente se o procedimento arbitral teve início antes ou depois da recuperação judicial. Nesse sentido, a primeira mudança legislativa é a disposta no novo § 9º do art. 6º da Lei 11.101/2005: “o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impedindo ou suspendendo a instauração de procedimento arbitral”. A nova regra chancela o entendimento doutrinário disposto no enunciado nº 6 da I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, organizado pelo Conselho da Justiça Federal, ao asseverar que: “o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impede a instauração do procedimento arbitral, nem o suspende”. A segunda mudança da Lei 11.101/2005, objetivou conferir maior transparência à situação econômico e financeira da recuperanda, em atenção ao princípio da simetria de informações, introduzindo novo requisito à petição inicial, exigindo a juntada da “relação, subscrita pelo devedor, de todas as ações judiciais e procedimentos arbitrais em que este figure como parte, inclusive as de natureza trabalhista, com a estimativa dos respectivos valores demandados” (art. 51, IX).
Em relação à recuperação extrajudicial, como também não há modificação na capacidade jurídica do devedor, o mesmo raciocínio da recuperação judicial é aplicado.
Em se tratando de falência, a questão se apresenta de forma um pouco diversa, em razão da alteração capacidade do falido, passando o administrador judicial nomeado a ser o gestor da massa falida. Daí decorre a terceira alteração da Lei 11.101/2005, inserindo, dentre as atribuições do administrador judicial, a de: “relacionar os processos e assumir a representação judicial e extrajudicial, incluídos os processos arbitrais, da massa falida” (art. 22, III, c).
Não se pode olvidar que o início ou o prosseguimento de uma arbitragem com a participação de um devedor insolvente pode encontrar obstáculos na falta de recursos para o custeio do processo. Este fato, todavia, não é justificativa hábil para afastar a eficácia de uma convenção de arbitragem validamente firmada. Nesse caso, tanto o devedor em recuperação judicial ou extrajudicial, quanto a massa falida (devidamente representada pelo administrador judicial e com a autorização do juízo falimentar), poderão buscar um contrato de financiamento de disputas (third party funding), por meio do qual um terceiro se dispõe a financiar as despesas da arbitragem em troca de um percentual dos valores recebidos em caso de êxito.
A lei modelo da UNCITRAL (United Nations Commission on International Trade Law) sobre insolvência transnacional foi internalizada no direito brasileiro com a reforma da Lei 11.101/2005. Em sua diretriz, a lei modelo deixa a cargo de cada Estado a escolha sobre os efeitos da insolvência sobre a arbitragem, em seu art. 20 (a) : “Upon recognition of a foreign proceeding that is a foreign main proceeding: (a) Commencement or continuation of individual actions or individual proceeding concerning the debtor’s assets, rights, obligations or liabilities is stayed;”. No mesmo sentido é a diretriz europeia inserta no art. 18 do Regulamento Europeu n. 848/2015: “Os efeitos do processo de insolvência sobre uma ação judicial ou sobre um processo de arbitragem pendente relativamente a um bem ou direito pertencente à massa insolvente do devedor regem-se exclusivamente pela lei do Estado-Membro em que a referida ação se encontra pendente ou em que o Tribunal arbitral tem a sua sede”. Com esse escopo, a quarta alteração da lei de insolvência brasileira imprime transparência e segurança jurídica, adotando posicionamento incisivo no art.167-M, § 2º, ao assertar que: “os credores conservam o direito de ajuizar quaisquer processos judiciais e arbitrais, e de neles prosseguir, que visem à condenação do devedor ou ao reconhecimento ou à liquidação de seus créditos, e, em qualquer caso, as medidas executórias deverão permanecer suspensas.”.
Em conclusão, a Reforma da Lei 11.101/2005, pela Lei 14.112/2020, em vigor desde o dia 23 de janeiro de 2021, consolida e assegura ao Brasil sua relevância como ator de vanguarda na arbitragem mundial. O breve quadro narrado é fruto da experiência arbitral brasileira, conduzida por valorosos e qualificados profissionais, chancelada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais locais.
[1] Professor Coordenador do Núcleo de Estudos de Direito de Empresa e Arbitragem – NDEA da FGV Direito RIO. Advogado, Árbitro e Parecerista.
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